REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DE TIMOR-LESTE

                                                              RESOLUÇÃO DO PARLAMENTO

 

                                                                               20/2011

Sobre a Importância da Promoção e do Ensino nas Línguas Oficiais para a Unidade e Coesão Nacionais e para a Consolidação de uma Identidade Própria e Original no Mundo


“... na realidade um povo sem identidade cultural não é Povo. E um povo, para atingir um nível avançado de desenvolvimento, tem de elevar o seu nível cultural.”

Konis Santana, texto sobre a língua escrito três meses antes da sua morte a 15 de Dezembro de 1997
É reconhecido por todos que a língua é um dos factores de maior importância para fazer face aos desafios criados pelo acesso generalizado da humanidade à informação e ao conhecimento. Em Timor-Leste, pela sua intrínseca diversidade linguística e cultural, e pelas cicatrizes deixadas pela ocupação que se seguiu à Proclamação da Independência, a política da língua é também essencial à construção da identidade nacional, à consolidação do Estado de Direito, à afirmação do país na região e no mundo e, sobretudo, à garantia de coexistência pacífica no seu seio.

A política da língua em Timor-Leste, como meio para aceder e contribuir para o conhecimento universal, mas também como meio privilegiado para consolidar a unidade e coesão nacionais, ao permitir a comunicação harmoniosa entre as partes que compõem o todo nacional e a interacção com povos historicamente irmanados, no seio da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, tem pois um carácter essencialmente estratégico.

Importa sublinhar que o caso de Timor-Leste não é único na história, sendo muitos os Estados que tiveram que dar prioridade à promoção da unidade linguística de modo a garantir a sua própria coesão e identidade nacionais. No seguimento dos grandes conflitos mundiais e das guerras anti-coloniais do último século, muitos Estados nasceram com populações no seu seio oriundas de diferentes tradições linguísticas e religiosas. Em muitos casos, sobretudo devido ao receio de criar clivagens e divisões que poderiam culminar em novos conflitos, adoptaram como oficiais línguas neutras, que não beneficiassem um dos grupos prejudicando os outros, de que são exemplos próximos a Austrália e Singapura, que optaram pelo inglês, sozinho ou a par das línguas maternas originais, ou a Indonésia, que optou por uma nova variante do malaio, que criou para o efeito.

Quando em 1974 começou a transitar para uma vida independente, Timor-Leste não precisou de procurar uma identidade nacional: apesar das suas várias línguas locais, a maior parte das quais já puramente timorenses, ou seja, não faladas fora das suas fronteiras, o país estava unificado pelo uso de duas línguas complementares, uma essencialmente falada, o tétum praça, como língua franca urbana, e outra essencialmente escrita, o português, como língua de ensino, desde que os dominicanos abriram as primeiras escolas primárias no principio do século XVII, e como língua da administração, desde o principio do século XVIII.

Logo em 1975 foi unânime o reconhecimento da necessidade de valorizar a língua portuguesa como elemento unificador integrado na cultura nacional de Timor-Leste. Mesmo os partidos minoritários, que defendiam a integração na Indonésia, defendiam também a continuação do português como língua de ensino e de administração. Conscientes desta força, os ocupantes do país após a Proclamação da Independência tentaram extinguir a língua portuguesa mas não o conseguiram, de tal forma ela se encontrava enraizada na vida colectiva do país. De facto, os timorenses que tinham frequentado a escola primária nas duas décadas anteriores à ocupação, e lhe sobreviveram, retiveram a língua aprendida apesar de terem deixado de precisar de usá-la, tendo sido aliás a eles que, passados 24 anos desde aquela data, o Governo Provisório foi buscar muitos dos primeiros novos professores do ensino primário, de novo leccionado em português.

Na verdade, pode-se afirmar que a politica de língua que minimize o lugar e o papel da língua portuguesa em Timor-Leste não considera a força que canalizou a Resistência Nacional contra a ocupação: o apego dos timorenses à génese da sua herança cultural. Com efeito, uma das razões que contribuiu para o forte enraizamento cultural do português foi a presença portuguesa ao longo dos séculos ter sido sobretudo comercial, religiosa, educacional e diplomática, muito pouco intrusiva nas instituições politicas tradicionais até meados do século XIX - quando se começou a uniformizar a aplicação da lei a todo o país à custa da independência dos reinos que o compunham, do que resultou, a partir da I Guerra Mundial, a criação gradual duma administração pública moderna, em língua portuguesa, constituída por 82% de timorenses em 1974, processo apenas interrompido pela violação da neutralidade durante a II Guerra Mundial.

Neste sentido o desafio, consagrado constitucionalmente em 2002, de adoptar o tétum e o português como línguas oficiais, apesar de o tétum ter sido até então uma língua franca sobretudo falada e de o português ter sido entretanto reduzido a 5% da população, não foi mais do que o corolário da consolidação da identidade cultural e política de Timor-Leste, antes e durante a ocupação, e da sua afirmação pela diferença, que sempre existiu, em relação à outra metade da ilha e às ilhas vizinhas.

A evolução desta consolidação seria pois fortemente prejudicada pela eventual ruptura da relação de complemen-taridade que existe entre as duas línguas oficiais, que permite que o tétum praça possa continuar a importar vocábulos de uma língua íntima e desinteressada à medida que se adapta às necessidades da administração do Estado de Direito soberano e à evolução da sociedade. Sem a língua portuguesa, o tétum praça, virando-se para as línguas oficiais dos países vizinhos, tornar-se-ia historicamente irreconhecível e, dada a dimensão relativa e consequente força centrípeta das economias daqueles, a identidade cultural nacional acabaria por ser absorvida, a unidade interna e o Estado de Direito enfraquecidos e as liberdades políticas neutralizadas.

Ora, para a preservação, aprofundamento e projecção no espaço e no tempo da relação desinteressada e complementar entre as duas línguas oficiais é fundamental acalentar um sistema de educação eficiente e homogéneo em todo o país apenas baseado nelas. Só assim se garante unidade, cultura e coesão nacionais. O desafio da paz permanente e da afirmação do Estado de Direito soberano não é compatível com vulnerabilidades internas susceptíveis de exploração com base na diferença.

A diferença e o multiculturalismo são intrínsecos à identidade de Timor-Leste, e continuarão a ser, como sempre foram, elementos fundamentais da vida colectiva, mas têm que ser enquadrados pelo objectivo maior da consolidação do Estado em torno de uma identidade cultural e política forte e original na região sudeste asiática e no mundo. Prejudicar este desígnio essencial, sobretudo na perspectiva iminente da adesão à ASEAN, seria condenar o país à irrelevância e, a prazo, à subordinação. Assim, o aumento do desempenho do sistema educativo deve ser activamente promovido mas sem prejuízo dos pressupostos da consolidação do Estado, interna e externamente.

Foi aliás a procura desse equilíbrio, entre aumentar o desempenho dos alunos em relação ao período da ocupação ao mesmo tempo que capacitavam os novos professores do ensino primário na língua portuguesa, à medida que ela foi substituindo a língua do ocupante nas escolas, que norteou a partir de 1999 os nossos parceiros estruturantes nesta área, Portugal e Brasil, designadamente, desde que foi introduzido, em 2005, o curriculum oficial em língua portuguesa do ensino primário, do 1º ao 6º ano, feito pela Universidade Católica Portuguesa e financiado pelo governo sueco. Dada a desproporção entre os objectivos e os meios, os resultados obtidos até hoje não deixam de representar um progresso admirável em relação à situação de partida há doze anos atrás, ou mesmo em relação à situação em 2005, tendo o número de timorenses entre os 16 e os 24 anos que, no âmbito do último censo, afirmaram em 2010 saber ler, escrever e falar português, que só este ano chegou ao 12º ano, atingido 39%.

Porém, sendo factores cruciais do desempenho dos alunos a boa alimentação e desenvolvimento físico, a acessibilidade das escolas, a plena formação inicial e contínua dos professores, a qualidade e abundância das instalações, dos equipamentos e dos materiais indispensáveis, designadamente, salas de aula em número que garanta turmas pequenas, mobiliário apropriado e recursos didácticos fundamentais como curricula, manuais e guias dos professores, é natural que, apesar do progresso registado, a introdução a partir de 2005 do curriculum oficial do ensino primário em língua portuguesa não tenha ainda podido produzir os resultados esperados.

O que se torna cada vez mais urgente garantir, através da intensificação do esforço de formação inicial e contínua dos professores, duplicando ou triplicando se necessário o número de formadores oriundos dos nossos parceiros estruturantes, a reabilitação e equipamento de todas as escolas existentes, a construção de todas as que faltam, a generalização da merenda, do desporto e dos cuidados básicos de saúde pública nas escolas e, acima de tudo, mediante a distribuição maciça de manuais a todos os alunos do 1º ao 6º ano.

Ao cabo de sete anos de experiência é igualmente premente admitir que a existência de uma rede universal de pré-escolas nas línguas oficiais, criada com o apoio dos nossos parceiros estruturantes, seria tão ou mais importante para o aumento da eficácia da aprendizagem em português a partir do 1º ano como o ensino em português no terceiro ciclo e no ensino secundário são importantes para o sucesso da introdução daquela língua no ensino superior, a partir do próximo ano.

Finalmente, é chegado o tempo de realizar uma ousada revisão da norma ortográfica oficial da língua tétum que ponha cobro às importantes resistências que até agora impediram a sua generalização e facilitem o seu intercâmbio com a língua portuguesa, reduzindo ao mínimo a necessidade de aprendizagem de duas grafias para as mesmas palavras.

Nesta conformidade, o Parlamento Nacional resolve, nos termos do artigo 92.º da Constituição da República Democrática de Timor-Leste e da alínea b), do nº 1 do artigo 9.º do Regimento, recomendar ao Governo que:

I – Crie com a maior brevidade possível uma rede universal de ensino pré-escolar nas línguas oficiais que prepare as crianças, durante pelo menos dois anos, para entrar em contacto nas melhores condições com o curriculum em língua portuguesa a partir do 1º ano;

II - Intensifique, com o concurso dos parceiros estruturantes nesta área, o esforço de formação inicial e contínua dos professores do ensino primário, com base no curriculum e nos manuais oficiais em vigor para os primeiro e segundo ciclos, do 1º ao 6º ano;

III – Introduza, a partir de Janeiro de 2012, o curriculum oficial em língua portuguesa para o terceiro ciclo, feito pela Universidade do Minho e entregue ao Ministério da Educação em Agosto de 2010, e o curriculum oficial em língua portuguesa para o ensino secundário, feito pela Universidade de Aveiro e entregue em Maio de 2011, o que deverá ser precedido e acompanhado por formação intensa dos correspondentes professores, sob responsabilidade das referidas universidades;

IV – Adquira e distribua a cada aluno, no inicio de cada ano lectivo, os manuais oficiais em língua portuguesa correspondentes ao ciclo, ano e disciplina, que ele deverá conservar mesmo depois de mudar de ano;

V – Elabore um Programa de Médio Prazo de Reabilitação e Construção de Pré-escolas, Escolas Básicas e Escolas Secundárias, em número suficiente para que as turmas não excedam os 25 alunos em nenhum ano;

VI – Estenda a todas as capitais de distrito, incluindo à capital nacional, Escolas de Referência nas quais todos os finalistas da formação inicial adquiram, durante um ano, pela prática acompanhada por docentes portugueses, os melhores padrões educativos em língua portuguesa, antes de serem colocados no sistema;

VII – Aumente a partir de 2012 o número de bolsas de estudo aos melhores alunos do ensino secundário para prosseguirem estudos superiores em países lusófonos;

VIII – Mandate o Instituto Nacional de Linguística para criar, em cooperação com as instituições responsáveis pelas escolas religiosas, uma comissão de peritos, nacionais e de outros países lusófonos, que proponha uma revisão da norma ortográfica da língua tétum até ao fim da presente legislatura;

IX - Apresente ao Parlamento Nacional relatórios trimestrais da realização das recomendações ora feitas.

Aprovada em 29 de Agosto de 2011.

Publique-se.


O Presidente do Parlamento Nacional, em substituição



Vicente da Silva Guterres