O superior interesse da criança na perspetiva do respeito pelos seus direitos

Texto elaborado por Nelinho Vital, Director Nacional da Direcção Nacional de Assessoria Jurídica e Legislação do Ministério da Justiça da República Democrática de Timor-Leste, jurista e perito em matéria de direitos humanos e direitos da criança

O superior interesse da criança constitui um dos princípios mais importantes da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a 20 de Novembro de 1989, e ratificada por Timor-Leste a 17 de Setembro 2003, o qual ratificou também os dois Protocolos Facultativos relativos à Participação das Crianças em Conflitos Armados e à Venda de Crianças,Prostituição Infantil e Pornografia Infantil.

A previsão do princípio do superior interesse da criança na Convenção sobre os Direitos da Criança surge ao lado de importantes princípios orientadores gerais, tais como a proibição de discriminação, o princípio do direito inerente à vida e à sobrevivência e desenvolvimento e o princípio da participação, o que confirma a sua natureza de princípio geral, orientador, interpretativo e conformador de todas as actividades e decisões adoptadas que tenham ou possam ter um impacto na vida de uma criança.

Por sua vez, o princípio do superior interesse da criança é também um princípio conformador da actividade de todas as autoridades chamadas a intervir em matéria relativa às crianças, quer sejam os tribunais, as autoridades administrativas, os órgãos legislativos, as instituições públicas ou privadas, quer sejam os Estados enquanto promotores da garantia dos direitos das crianças.

O princípio do superior interesse da criança visa a salvaguarda do bem-estar físico, emocional, intelectual e psicológico da criança e deve ser tido primacialmente em consideração em todas as decisões relativas à criança. Ora, face à sua abrangência e plasticidade, importa determinar o seu sentido.

E indagar sobre o superior interesse da criança na perspectiva do respeito pelos seus direitos é o mesmo que perguntar de que modo se concretiza, efectiva ou materializa esse tão importante princípio.

Tal tarefa não se adivinha fácil. Contudo, pode dizer-se que a densificação do princípio do superior interesse da criança há-de buscar-se em concreto na efectivação dos direitos que lhe são consagrados. Ou seja, a medida da necessidade de garantir a protecção e o bem-estar da criança há-de ser encontrada através daquele que for considerado, em concreto, o seu superior interesse.

A criança surge aqui enquanto titular de um vasto conjunto de direitos de provisão, de protecção, mas também enquanto sujeito com capacidades participativas, sendo-lhe reconhecida a sua individualidade e personalidade, devendo ser-lhe reconhecido o direito de exprimir livremente a sua opinião e desta ser tomada em consideração em todas as questões que lhe digam respeito, de acordo com a sua idade e maturidade. Só assim se concretizará o seu superior interesse.

Da consagração da criança como titular de direitos e liberdades, poderão retirar-se dois aspectos essenciais: por um lado, o dever inquestionável da sua garantia por parte do Estado e, por outro lado, o dever dos pais na orientação dos filhos no exercício dos seus direitos de uma forma que corresponda ao desenvolvimento das suas capacidades.

A título de exemplo, esta dimensão é confirmada pela Constituição da República de Timor-Leste, ao determinar que a criança tem direito a proteção especial por parte da família, da comunidade e do Estado, particularmente contra todas as formas de abandono, discriminação, violência, opressão, abuso sexual e exploração.

Nestes termos, a protecção legal conferida às crianças poderá ser interpretada como uma protecção dos seus direitos e liberdades, cujo objectivo principal é assegurar o seu bem-estar. Por isso, o âmbito da protecção da criança move-se em volta da protecção dos seus direitos e liberdades e do seu bem-estar.

Por conseguinte, a sua garantia é partilhada pela família, pela comunidade e pelo Estado, os quais assumem uma completa e interligada rede de responsabilidades, cujo exercício há-de orientar-se pelo superior interesse da criança, perspectivado pelo seu respeito, enquanto titular activo de direitos. Deste modo, a família, a comunidade e o Estado aparecem como os verdadeiros destinatários do princípio do superior interesse da criança, sendo os principais actores da sua concretização.

A família surge como o elemento mais importante no que concerne à protecção das crianças. Isto é assim, porque a criança nasce, cresce e desenvolve-se no seio da família.

Por isso, a família desempenha a importante função de protectora dos direitos das crianças, cabendo-lhe cuidar, nutrir, educar e cultivar a criança de acordo com os seus interesses, talentos e habilidades. Também à família cabe a obrigação de prevenir todas as formas de violação dos direitos da criança.

A comunidade aparece como o segundo espaço mais importante no que respeita à protecção da criança. Na verdade, as famílias não vivem isoladas e, embora sejam independentes umas das outras, elas integram uma comunidade, sendo também as crianças membros dessa comunidade.

Por isso, a comunidade não deve ser apenas um conjunto de cidadãos passivos, mas deve ser entendida como um importante factor de controlo social, devendo ser entendida como “social engineering” para o processo de desenvolvimento da criança. O Estado, por sua vez, tem a obrigação de promover a protecção dos direitos da criança, através da definição de políticas e medidas, a fim de alcançar níveis de bem estar e segurança adequados.

Cabe ao Estado a adopção de determinadas leis ou políticas, precisamente como forma de assegurar a realização do princípio do superior interesse da criança.

Feito o enquadramento da sua natureza interpretativa e encontrados os seus destinatários principais, deve questionar-se, por último, de que modo a Convenção dos Direitos da Criança vincula os Estados na concreta definição do superior interesse da criança, ou seja, quais as obrigações que, em concreto, resultam para cada um dos Estados que a ratificaram.

Assim, em primeiro lugar, a concretização do superior interesse da criança pelos Estados deve buscar-se através de uma abordagem concertada com os direitos humanos. Em segundo lugar, é importante que os Estados não usem o superior interesse da criança para justificar ou conduzir a uma violação dos seus direitos.

Em terceiro lugar, e por fim, é do superior interesse da criança que o Estado promova o aumento dos meios das famílias para que possam assumir plenamente os seus papéis em matéria de proteção dos direitos da criança, o acesso à saúde, à educação, à formação, à alimentação e à boa nutrição, o combate a todas as formas de exclusão social, a promoção da inserção familiar, o combate a todas as práticas de tráfico e de exploração sexual de crianças, de trabalho infantil e da exploração económica de crianças, bem como de recrutamento de crianças por grupos armados e, em suma, o combate a todas as formas de violência contra as crianças.

Por fim, o Estado deverá promover a participação efectiva das crianças no processo de tomada de decisões e de execução das políticas que lhes dizem respeito, bem como facilitar esta participação.

A resposta que se acaba de formular há-de servir como guia de orientação para que em cada um dos países da CPLP, e na própria CPLP, seja conferido aos direitos da criança uma maior relevância, tendo em visto fomentar a sua concretização e prevenir as violações dos seus direitos.

Também assim se densificará o superior interesse das crianças no respeito pelos seus direitos.